quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Dona Ana


Ela passa os dias em sua cama. Pouco dorme. Vive sentada ali, na cama à beira da janela, quase todo tempo. Ora fia linha do capucho de algodão ora prega retalhos que ganha em sua peleja por criar pequenos tapetes.

Dona Ana “vive passanu o tempo” dessa maneira.


“Gostava muito de coisa doce. Quando pensa que não... esse diabete me pegou”.

Dia após dia, Dona Ana toma remédios. Toma para fazer de suas caixas sacolinhas enganchadas na parede azul em frente e perto da cama. Nelas, alças feitas com tiras de pano. Nelas,  caneta, caixa menor de remédios, capuchos de algodão e pequeno frasco com óleo de amêndoas.

Com as caixas de remédios a tempos tomados Dona Ana faz sacolinhas.

Com sua lida, passa o tempo e espera o dia de dormir um pouco mais.

“Num gosto mais de uví muzga não. Corqué festa de muzga me dá de chorar. Me lembra a alegria de meus fio que já morreru. Inté na televisão, condi ela ta aí ligada, que Gení tá assistinu e parece aqueles cantor tocano muzga e fazenu cantoria me dá de chorar cá de que eu lembro da alegria de meus fio.”

Dos retalhos que sobram de sua labuta, Dona Ana faz “chuchas” que dão cores novas à parede azul em frente e perto da cama. Vez em quando, uma ou outra afaga o cabelo crescido da velha senhora.

Aqui, no quarto de Dona Ana, tudo conta do passar de seus dias.

“Inté agora num passô o carro da escola. Condi passa agente vê de longe. Se vocês vê as greada dos minino... parece é um bucado de periquito tudo cunversanu”.



Dona Ana cobre com um forro o fundo da costura de retalhos feitos tapetes. Diz que é feio; que jeito é esconder mesmo. Escondido pelo forro, porém, o pés-ponto de linha fiada em fuso pelas mãos ainda ativas de Don’Ana conta do passar dos dias dessa velha senhora  – mulher a viver ali, quase todo tempo, sentada em sua cama.


“Tem hora que eu fico labutanu pra infiá linha no fundo da agúia. Chega tem hora que deito, fico com raiva de querer fazê as coisa sem pudê.”

Dona Ana não gosta de se ver desocupada. Tampouco tem pressa na feitura de seus trens. Pouco lhe serve o que está feito ou o que, a pouco, fora terminado.  Viram presentes. Passa adiante. Afinal, se está pronto já virou tempo passado e o que quer Don’Ana é passar  pouco mais o tempo.





Vigi, como gostei de passar tempos com Dona Ana!

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Dona do riso solto


Redundante, mas Dona é dona do riso mais livre de Jenipapeiro.
Na tarde que chupávamos laranja, me disse que eram lindos os pelos crescidos em minha perna. Eu, em resposta típica de baiana, disse-lhe: “Deus é mais!” E o riso solto comeu no centro!
Acho que Dona enxerga o mundo com ver de criança. Vendo tudo literalmente. E naquele momento ela deve ter visto um Deus mais peludo do que eu.  

Receita de Dona Dona / Frases de Seu Ivo


Íamos dormir na casa de Dona Lina, acabou que dormimos na casa de Seu Ivo e Dona Dona.
Com ele histórias sem fim, com ela receita de bolo frito:

BOLO FRITO DE DONA DONA
Peneirar o fubá (1/2 pacote)
4 ovos
1 colher de açúcar
1 copo de leite
2 a 3 limões ou laranjas (ou ambos)
2 colheres de fermento
3 colheres pequenas de manteiga ou margarina

Mexer tudo.
Fritar o óleo (esquentar).
Fritar os bolinhos.





SEU IVO: 
"(...) tem uma menina, muito sábia. Ela disse: cada animal tem seu jeito de chamar. Não adianta chamar galinha com som de gado."


"Uma coisa que a pessoa tem que ter é fé. 
A fé é uma coisa muito segura pra gente"


"Cidade grande você não tem atenção. Aqui não, vai passando - bom dia! Bom dia! Como vai?
E se ouve a resposta da pessoa."

Maria Clara

Vinda e ficada por promessa, Clara é uma criança um pouco diferente. Excêntrica, ela enxerga o que a gente sente e o que não costumamos contar.
Destemida, ela já se atirou de altura grande, já rezou pra o pai distante e sempre conseguiu livrar.
Poucos entendem a menina, ela hoje, puro doce, inquieta quem lhe ver. De pouca idade a florzinha, com tanta sabedoria, ao invés de brincar de boneca, prefere tudo entender.
Mas o mundo tem dessas mesmo, uns nascem prontos, outros crescem cedo... Mistérios, como entender?
Maria Clara, Clarinha...
Depois de perder filho na barriga, o pai de Clara fez promessa para a santa de mesmo nome. Se criança nascesse com vida, receberia nome de Maria Clara.
Fez que aconteceu, menina nasceu, nome registrado, saúde fincada, família feliz.
Um belo dia, mãe querendo desmamar a menina, preparou mamadeira com amor e tudo! Clara só querendo sumo de peito, ao rejeitar mamadeira acabou se atirando do primeiro andar. “Cinco metros de altura, pura travessura”, relata sua mãe. “Até hoje estremeço! Nem os médicos acreditaram no ocorrido! Diziam que se vissem acreditavam, mas sem ver...”.
Clara se jogou do primeiro andar e NÃO sofreu nenhum arranhão!
Passou três dias internada em observação e no quinto dia, já em sua casa chamou a mãe e disse queria um vestidinho marrom. Em desespero a mãe quase não atendeu ao pedido da menina. É que na Paraíba, onde Clara nasceu, roupa marrom é mortalha. E a mãe pensou com certeza que a menina ia morrer.
Mas mãe sempre faz o que filho pede. Deu a menina o vestido marrom e depois de um dia inteiro de mortalha, Clara tirou o vestido e falou pra mãe dá pra alguém da rua.
Anos depois, em visita a Bom Jesus da Lapa, Maria Clara já crescida, avistou a imagem de Santa Clara e com muita alegria falou: “Mãe, quero esta santa pra mim! Foi ela, mamãe, a minha ‘mãe marrom’ que me segurou naquele dia!”.


Bebedeira


Maldição é essa cachaça,
essa cerveja, esses vícios.
Pai tinha, vô tinha,
filho não tinha, agora deu para ter, tá aí bêbado a festear.

É uma maldição,
uma tristeza ver ele assim, desrespeitoso a inventar alegrias.
Uma tristeza!

E é.
Nesta jornada o encontro com o álcool tem doído tanto quanto o encontro com a seca.

Povoado Jenipapeiro, município de Morpará, 30 de julho de 2012


Ele nos recepcionou.
Paramos para pedir informação: aqui é o assentamento? Disse ele que não, que aqui era o Jenipapeiro, um braço do povoado do Capão, braço pequeno, só cinco casas, que tinha um pé de Jenipapo aqui e por isso ficou o nome, o povo começou a chamar assim. Mas o senhor magro tem o dom de contar histórias e de unir causos, uniu um ao outro e da resposta surgiu conversa longa. Seu nome: Seu Ivo. Casado com Dona Dona (é sim, Dona é seu apelido), pai de 3 filhos que moram 2 em São Paulo e 1 em Morro do Pará, que no mapa tem-se como Morpará.

Não era aqui o destino, mas acabou sendo. Ficamos em Jenipapeiro, terra de Seu Ivo e do seu cachorro Durex.


CIRCO SHALLON, ANIVERSÁRIO DE ALICE


Morpará, 29 de julho de 2012
Do povoado Santo Antonio viemos para Morpará. Não imaginávamos a beleza deste lugar até atravessar de balsa o rio e cá chegar.


  Tendo achado pousada a uma quadra do rio, saímos para comprar ingredientes para o bolo de aniversário da Alice – é hoje! E em seguida fomos tomar banho de rio enquanto ainda era dia. E eis que nos deparamos, na beira do rio, com uma lona de circo montada: SHALLON ESTÁ NA CIDADE! Fomos tomar um banho relaxante no rio, depois chegaríamos no circo.


Em frente ao circo umas cinco crianças se empilhavam em frente a fim de entrar, espiar, saber novidades. Que horas vai ser? Um disse 19h, outro 19:30h, outro gritou “será às 21h”... restou-nos perguntar a alguém de dentro.

- Boa noite!
- Vai entrando!

Assim conhecemos Eduarda. De longos cabelos negros foi ela puxar conversa boa por mais de uma hora conosco. “Aprendi isso certa vez: quanto maior o cabelo e maior o pano, maior o movimento!” – explicou. Falou de trailers, do marido, da filha gerada e dos filhos criados. Agora ia mais um rapaz a seguir com o circo: “esse é dos bons, não tem frescura e trabalha direito”. Falou de cooperativa circense e da lona prometida que nunca chegou. Da pipoca de microondas que todo mundo quer e que estava em falta no mercado. Da escola dos filhos, condição itinerante de estudos: “mas a prioridade é os meninos. Pode ter 10 pessoas de público, 5, se é época de provas ou trabalhos a prioridade é eles, a gente fica mais.”
Depois, havendo vento frio e estando ainda nós três molhadas, retornamos para pousada.
Alice preparou seu próprio bolo e brigadeiros de aniversário. 

 
Fomos ao circo, assistimos, rimos com a participação do público no ‘cavalo-maluco’, retornamos para o bolo, parabéns-a-você-nesta-data... delícia de cobertura de chocolate! E fomos dormir.

domingo, 12 de agosto de 2012

comentário, pouco antes de um partir


“Tem gente que chega aqui, faz festa na Comunidade, e no final vem bebida, vem cachaça, vem briga. 
A gente tava conversando lá ainda agora sobre isso.
Eles só deixam tristeza,
vocês só deixam saudade.”

Dona Nega – Povoado Santo Antônio, Ipupiara/BA

Mulungu


Povoado Santo Antonio, 28 de julho de 2012


Acordei às 6:30h a fim de caminhar. Sem rumo, a apreciar os morros, os galhos secos, os sons de vento e de pássaros desconhecidos, galos ao longe. A visitar o Mulungu, procurar galhos secos nos pés da árvore de uma das madeiras mais nobres para bonequeiros, na fabricação de bonecos. No chão pego algumas sementes para entregar a meu amigo Tcheli; nos braços pedaços soltos da árvore enorme. 

Em seguida caminho mais um pouco e sento-me ao lado de um cactus que, de longos braços erguidos, reverencia a manhã. (Sou apaixonada por pessoas, mas às vezes preciso mesmo é desta solidão para celebrar os encontros.)


Ao longe os sons se misturam, pássarosgalosgalinhasventocigarras e alguns que não reconheço o que são, mas que lá estão. É preciso conhecer para ouvir, para amar? Saber o que se ouve? Ouvir e amar me basta.
E sigo a caminhar pela estrada de galhos secos, agora galhos secos de Mulungu nas mãos.

‘Rugas’ no Povoado Santo Antônio, município de Ipupiara/BA


Ocorreu de ser a primeira vez que encontramos um povoado sem crianças. Aqui, agora, o mais novo deve ter a nossa idade: 23 a 27, não menos. Os demais são idosos.
Não bastasse a alegria nossa em experimentar trocar em lugar assim, hoje (dia 27.07) à noite Laurinha foi apresentar ‘Rugas’ na escola (alfabetização para adultos) para todo o povoado – moradores de suas 12 casas, aproximadamente. E ocorreu de uma outra energia se instaurar na apresentação.

Eu só fiz apreciar. Enquanto operava a luz com mini-refletores e lanterna emprestada degustava aqueles olhares para Laura que, como Zefa, lembrava e esquecia de seus causos. Vi o medo inicial pela faca de cozinha usada em cena para cortar doce de leite, medo este vindo de tragédias assistidas pela TV (foi-nos revelado ao final, das próprias vozes que temeram). Vi o não saber deles se podiam ou não interagir – e o agir e falar bonito e natural. Vi os corpos imóveis a apreciar, a confirmar mitos, a rir de uma velha a dizer que veio a Santo Antônio cobrar o marido prometido, nunca encontrado. Dona Ana a sorrir afirmava: “coloca o Santo de cabeça pra baixo até encontrar um homi bom!”. Vi o levantar de um, o sair. Voltou em seguida, e logo entendi que foi para estrada para fazer suas necessidades, que aperto de bexiga se tem em todo lugar, voltou ligeiro e tornou a sentar atento. Vi a população inteira a dizer ao final que nunca vira aquilo, que bonito, que bonito!  - surgiram elogios de todos os lados. Uma conversa longa se seguiu, calma e madura como a velhice.

Vi a emoção de Laura em frente a todos, a trocar histórias e olhares. Chorei eu lá no fundo escondida por detrás do refletor e da lanterna.  Sabemos que essas pessoas não precisam da gente, que a gente sim precisa delas, suas histórias, seus sorrisos, o sentido que dão à nossa arte. E ao final as pessoas retornando às suas casas de lanterna na mão, iluminando o chão e o céu revestido de estrelas que não cintilam no alto dos prédios das grandes cidades em que vivemos. 


Esta noite algo muito bonito aconteceu aqui, e fiquei comovida e grata por ter presenciado tal lindeza!

Seca


Chegamos após dia longo de estrada e sol quente a vermelhar a face. O calor aqui assusta, a sombra conforta, o vento alivia. Disse Seu Wilson do povoado Santo Antônio, agora onde estamos: “fazem muitos anos que eu não vejo seca assim. Sempre tem seca, mas como esta, com esse calor todo... na minha lembrança só em 1972.” Restou comprar mais ração, que há meses o gado não sabe o quê é pasto. E o saco de ração cada vez fica mais caro, “são os vendedores se aproveitando da necessidade da gente. No início tava R$ 60, esses dias subiram pra R$ 100 o saco, uma semana depois já tava R$ 120! Aí vez ou outra tem que vender bicho, senão compra ração como?”

Dona Nega, irmã de Seu Wilson, já disse: “quero limpar a casa – não dá, pra não gastar a água que o caminhão pipa traz, lá de vez em quando. Quero ir plantar – não dá que como é que a planta vai aguentar? Bicho eu não fico com mais nenhum, nem que queiram me dar, que é maldade com o bichinho, não tem como criar mais do que o que a gente tem. Aí eu fico aqui em casa, matando tempo, fazendo minhas coisinhas, cozinhando... que agora é isso, né?! O tempo agora é esse.” 

Nega morou muitos anos em São Paulo. Passou longo período como costureira de luva e saco de boxe, “duro! Até hoje me dói o ombro” – conta, apontando a dor. Mas decidiu voltar para terra que nasceu, em casa ao lado da casa da mãe, vó tendo sido parteira ali a receber nascimentos nas mãos. E aqui voltou a ser feliz, morar em paz, a prosear agora conosco em tempo sem chuva e a entender os ciclos da terra, das tarefas e da vida.

 
A seca é forte, o calor assusta. Só o que não seca é o calor humano, que este segue vivo e quente como o sol.

Panela de pressão


“Minha mãe não usa panela de pressão não. Diz que isso não se usa, que vai fazer subir a pressão dela.”
Joelma – Povoado Cotovelo, Gentio do Ouro/BA

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Despedida


Menino de apelido ‘Torrado’ não estava. Nem lá nem cá, cadê ele para nos despedirmos?
Disse moça: ele não gosta de despedida, e gostou de vocês. Deve de estar chorando por aí em algum canto.
Vasculhamos toda povoação, e nada dele.




A pequena Geisiane, nos seus 5 anos, estava presente na hora do tchau. Pouco antes, após a apresentação de ‘Gringa Errante’ foi a primeira a me abraçar. Um abraço tão forte e silencioso a prender minhas pernas.
Na despedida deu outro abraço forte, foi de colo em colo em nós três.
E quando saímos de carro, correu até o lado do veículo, quando já estávamos dentro, e deu-me sua pequena mão pelo vidro. Olhou nos meus olhos longo tempo, apertou minha mão, leve sorriso no rosto. Até que soltou e voltou para casa, caminhando com passos leves e olhar baixo, em seu silêncio de menina.

Apresentações no povoado Cotovelo - município de Gentio do Ouro/BA

 Divulgação com a palhaça Bolinha do espetáculo 'Rugas' :



Público de 'Rugas':



Bonecos em miniatura:

Dona Euzita

Ela pediu desculpas pela sujeira da saia e por estar sem dentadura. Convidou a entrar. Licença, Dona Euzita! Sua sala azul era toda encantamento: santos por todos os lados acompanhados de bonecas. Ih, tenho tantas...! Tem a que ri quando mexe na barriga, a que fecha os olhinhos, aquela, esta. Por todos os lados. Elas ficam aí quando faço minha lapinha, disse, apontando o altar.


Dona Euzita mostrou-nos seu jardim, plantas cultivadas, alinhadas, a fazer belezas. As flores, os frutos, os temperos. Depois voltamos para sala povoada de santos, onde ela sentou-se na cadeira de balanço a falar da vida como quem tricota mantas. Tecia sua leveza em palavras bem postas a falar de medo de tempestades e da festa que oferece, todo ano, no mês de janeiro. Dá comida para todos que vem. E isso sai caro, Dona Euzita? Ah, mas eu faço com tanta satisfação! Dia inteiro de reza, todo ele, dia 20 de janeiro, dia de padroeiro, de Reis, de oração.


Dona Euzita fala de santos como de parentes próximos. Tem medo de Cosme e Damião a fazer travessuras com as galinhas da vizinha. Não conhece a história de Índia Jurema, mas a têm junto a outras santas católicas.
A senhora de pele enrugada falou da chuva, e do medo que tem de tempestades. Não se pode nem falar em trovão – sussurra que até a palavra dita atrai bicho ruim. Mas ao falar de chuvas bravas o mesmo tanto de medo é um tanto de saudade que carrega na lembrança. Porque justamente nestes momentos de fúria dos céus era quando a sua mãe juntava todos os filhos – juntos, bem juntinhos – por debaixo do cobertor. Não se podia nem falar nada. Em dia de chuva andar pela casa com trovão lá fora, nem pensar! Bicho ruim.
(Oh, saudade de mãe a abraçar todos por debaixo do cobertor.)

A fé de Dona Euzita transbordava. A paz de sua casa de paredes azuis encharcou-me, saí de lá em um silêncio tranquilo. Silêncio de fim de tempestades, a juntar e assustar a gente por debaixo de cobertores agora invisíveis.

Povoado Cotovelo, 23 de julho de 2012


A potência de tocar instrumentos e cantar cantigas é algo tão forte que surpreendo-me toda vez que tocamos. Nem eu creio que consigo tocar o tambor no ritmo – cheguei em Salvador dizendo: “não Laurinha, não vai rolar!” Graças a insistência dela e de Alice fui pouco a pouco aprendendo uma coisa ou outra, e apesar de não saber muito já atrevo-me a algumas batidas.
Ontem à noite vieram aqui na casa de Joelma a pedir canção. Na segunda música a casas havia enchido de gente vinda de todo canto a ouvir e vibrar junto. Coisa bonita de se ver, gente a sorrir. E foi tanta animação (e sendo tão pequeno nosso repertório)que repetimos três vezes as mesmas músicas, e as pessoas ainda a bater palmas no ritmo e a pedir que tocássemos mais.
Ao fim, após longo tempo de silêncio a tentarmos lembrar de canções diferentes veio o pedido:
- Ah... então toquem só mais uma para Jair.
- Jair?
- Já ir dormir.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Noite


Povoado Gado Bravo, Xique-Xique, 21 de julho de 2012


A noite se encheu de estrelas. Cintilam no balanço do Rio São Francisco a poucos metros dos meus pés que, descalços, tocam na terra, cá sentada em frente à casa de Tozinha estou. Uma lanterna ilumina minhas letras perdidas em caderno sem linhas. O Rio sussurra estalos, grilos cantam afinados a fazer sinfonia de rio. Do outro lado ouve-se o agito da noite de sábado de Xique-Xique, a campanha política que não cessa com suas músicas repetitivas. O vento faz dançar meu cabelo a se empoleirar nos meus ombros. Fecho os olhos e dou-me conta que é paz que habita dentro e fora de mim.
Cá debaixo das estrelas na casa reuniram-se para assistir novela das 9h, vingança! Não há energia para luz, mas a placa de energia solar garante o funcionamento da televisão em duas casas onde juntam-se os habitantes. “É distração para nós” – dizem, e não nego. No dia de hoje uma tal de Nina e uma Carminha se encontram na tela. Eu preferi me encontrar com o Rio, cá fora onde estou.

Olho para o lado e vejo a fogueira que vai se apagando, pouco a pouco, em seu ritmo de amarelo, vermelho e azul. Estive agora a pouco a me aquecer por lá, a conversar com Dona Valdete, ouvir suas histórias de saudade dos filhos. Vive com eles, faz um dia que está longe deles e já encharca os olhos de saudade a falar. “É porque sou mãe”, disse. Lembrei da minha mãe, deu saudade, logo volto para dividir o chimarrão, jogar conversa, costurar ideias.
Agora estou em paz com este tempo que tenho só e simplesmente para apreciar o Rio, as estrelas e a noite. No escuro, sorrio. Meu contentamento em estar aqui tem o tamanho das distâncias do meu andar.

Ouço passos, e vejo um cavalo a ir beber água no Rio. Sua silhueta desenhada no reflexo da água que pulsa encanta meus olhos. Já imagino bonecos, teatro de sombras, e percebo que estou a criar. Uma cena toda brota de meu olhar o animal que, só, vive.
Neste criar meu vestido baila na dança do vento, meu cabelo segue a pincelar meus ombros, um frio leve me arrepia os pêlos dos braços que tornam a apontar as estrelas. Tenho anseio de agradecer, de rezar, mas não sei como. Ansear rezar é reza? Contentamento é sintonia com isto a que chamam Universo? Sozinha e em silêncio mergulho em uma graça sem religião, sem cobranças, sem instituições de fé. Este lugar aberto, estas estrelas e este rio tornam-se o meu templo, e eu de cá repouso a caneta sobre o caderno, desligo a lanterna e opto pelo silêncio profundo com riso nos lábios.

momentos - povoado Gado Bravo





Povoado Gado Bravo, Xique-Xique, 20 de julho de 2012

Ficamos mais tempo do que o previsto em Xique-Xique. Teve cólica de mulher, conversas, internet, decisões, e nisto ficamos 3 dias. Para desafogar preocupações fomos tomar banho no Rio. Que bonitas aquelas casinhas do outro lado da água doce!


Dia seguinte fomos para o povoado próximo que indicaram: Marreca Velha. Lá é pequeno, disseram. Chão e poeira, chegamos lá de tarde. Duas ruas o povoado, mas com cerca de 50 casas. Nós 3 concordamos: gente demais para nossa proposta. Voltamos, um dia a mais na barulhenta Xique-Xique.
No retorno veio a decisão: vamos atravessar o Rio, visitar aquela ilha, do outro lado de lá do banho que tomamos. Parecia que Rio pedia travessia, todos estes dias a acariciar nossos olhos.
À noite preparamos tudo – para o outro lado do Rio não tem como ir de carro. Reduzimos ao máximo as bagagens, ficaram duas mochilas, uma mala de “Gringa”, tambor, sanfona.
Na manhã seguinte encontramos Renivaldo no cais, tô indo pra lá, povoado Gado Bravo. Subimos no barquinho e no outro lado daquele braço de Rio São Francisco já desembarcamos cantando e tocando.


sábado, 21 de julho de 2012

Passarinho


Aqui na sala de Seu Agripino tem duas gaiolas: uma com um Azulão e um Culeirinha e outra com outro Culeirinha. Cantam muito esses pássaros em meio a bambus atados!

Ontem um deles saiu da gaiola, o companheiro do Azulão. Disse Seu Agripino: “ele escapa, tem uma fresta ali arriba, dia desses saiu também”. Seu Agripino só ri e espanta com chinelo gato Mimi que fica embaixo preparando bote.

O mais estranho é que pássaro não voa para rua mesmo havendo porta aberta ao lado.
“Não é a primeira vez, não”. Pássaro fica buscando fresta para entrar de novo em gaiola. Rodeia toda ela, colocando cabeça para dentro, tentando entrar. Não quer sair, não. “É mesmo, Seu Agripino?” “É, ói lá. Vai vê ele gosta daí, de fica preso na gaiola. Vai entendê, né?!”

GRINGA ERRANTE em Alegre



sexta-feira, 20 de julho de 2012

Dona Maria e Filho


Dona Maria conheceu Marido que morava em Paraná, sul do Brasil. Foi para lá. No entanto tendo passado um tempo o casamento findou. Ficou Filho pequeno, tinha um ano e pouco, voltou para povoado baiano com Mãe. Disse a Mãe à juíza: eu que vou criar, posso, Marido não me encontrou trabalhando direito? Vou seguir trabalhando, ora essas. Juíza liberou a ida, rumaram para Alegre.
Quando Menino fez uns 8 anos disse que queria ir com Pai e com Vó. Mãe sentiu dor no peito, mas deixou. Não podia segurar querer de Filho. Falou com Pai, falou com Vó, embarcou Menino. Ele disse que ia voltar logo. E foi.
Acontece que Menino ficou em Paraná mais e mais tempo. Escrevia toda semana para Mãe, mas não recebia resposta. Chamou ela de ingrata – que mãe é essa que abandona, que não responde carta?
Do outro lado Mãe aflita a falar por telefone com Vó distante. Dizia a mais velha: teu filho não volta mais não, não quer, gostou daqui. E coração de Mãe entendia o querer de Menino: deve de tá melhor lá mesmo, deixa ele lá, se tá feliz.

Perderam contato. Mãe chorava de saudade quase toda semana, sonhava com Menino chegando.

Um dia, tendo ido visitar Filha que havia ido morar em São Paulo, falou da saudade. Filha incentivou que procurasse; Amiga de Filha fez busca na internet. Tendo registrado uma linha telefônica no nome dele encontrou: Elvis Franciê. É meu filho! Mãe tomou coragem, ligou. Oi, quem tá falando é Maria.
Quem atendeu foi Nora – Mãe que nem sabia que ele era casado...! – e falou vem pra cá, guardo segredo pra preservar surpresa em Filho. Lembra onde é? O mesmo lugar? É. Lembro.
No outro lado do país, no mesmo dia da ligação, bem mais tarde, Marido/Filho chega em casa. Ao abraçar Esposa/Nora confessa: senti saudade de Mãe hoje, parece que via ela em cada canto. Em cada rosto maduro, fiquei imaginando como Mãe estaria mais velha. Esposa se emocionou e não resistiu: falei com Mãe hoje, vem aí. Ele chorou, ela chorou, juntos aguardaram.
Mãe sozinha no ônibus para Paraná, sentiram seu sotaque carregado. Me desculpe, senhora, mas vem de onde? Venho de Alegre, Bahia, vou encontrar meu filho, faz 18 anos que não vejo ele. O ônibus todo ouviu história, o ônibus todo tomou decisão: vamos juntos ver o reencontro.
Chão e chão, ônibus em estrada longa. Até que chegou. Desceu Mãe com coração palpitando, parecia pipoca em peito quente. Já a aguardavam, criança gritou Vó e correu para o colo dela. Eu sou vó?!! Veio família toda, era Mãe, Filho, Nora, Neto, Motorista, ônibus todo chorando junto.

Mais tarde descobriram que Mãe não recebia as cartas porque Vó do Paraná escondia em vaso. Não queria que Menino voltasse, e era enorme o vaso cheio de cartas com endereço certinho, mas sem entrega permitida. Encontraram vaso preparando mudança, tendo falecido a Vó, anos e anos depois.
Mais tarde descobriram que Irmã de Mãe morava na mesma rua de Menino, mas não sabia que menino era Menino de irmã, brincava com ele sem nunca supor que era parente próximo.
Mais tarde Mãe viu seu retrato desenhado por Filho quando chegou em cidade de Pai, retrato que ele guardou com carinho durante seus 18 anos de lonjura.

Esse ano Menino volta para visitar o povoado de Alegre. Tomar banho de rio que não esquece e conhecer irmãs que dele só conhecem nome e lágrimas saudosas de Mãe. Esse ano ele vem, agora a gente não se perde mais não, Moça. Vem aí meu Menino!

quinta-feira, 19 de julho de 2012

RUGAS na sala de Seu Agripino





Na apresentação de “Rugas” tiveram bolos preparados por Alice, batidos em neve por Seu Agripino.  Teve professora a falar do povoado Quilombola e a puxar canção com crianças. Teve sala de Seu Agripino cheia, cantiga de Reis na voz de Dona Minian, Dona Maria a contar sua história e meninada a ouvir, atenta.

Povoado Alegre, Itaguaçu da Bahia, 16 de julho de 2012


A casa toda range. O vento forte lá fora traz poeira de rua e canto de pássaros.
Estou cá na casa de Seu Agripino que nos deu acolhida, as outras “muié” foram para a cidade, em Itaguaçu, ver se conseguiam vidro e lacre para fogão que nos deu susto ontem – queimou. Por descuido do dono ficou sem lacre, por descuido nosso recebeu bolo sem gente a acompanhar o assar de perto. Quando chegaram na casa de Seu Agripino fogo já estava alto, vidro estilhaçado, até fio de geladeira que estava ao lado queimou. Faltou pouco para explodir, “foi Deus que fez chegar antes”, tempo de fechar gás, tirar geladeira da tomada, balde de água a cessar fogo.
Foram três a verem o fogo, tendo ido ver prontidão de bolo misturado na casa de Cirlene: Seu Agripino, Alice e Júnior. O pequeno, com seus 5 anos foi quem viu primeiro: pulando na cozinha só dizia “vixi, vô, vixi, é fogo!! Vixi!” Seu Agripino correu a tomar providência enquanto Alice correu a chamar gente para ajudar. Mas na corrida desesperou, chegou em frente a Laura, Cirlene e eu e, não querendo assustar, falou calmamente e com sorriso no rosto (e sei que em estado de choque estava com aquela calma aparente):
“Gente, o bolo não deu certo!”
“Por que, Alice?”

“É que pegou fogo na cozinha. A cozinha toda tá queimando.”
“Como assim, Alice, tá brincando, né?!”
“Não... tá... pegando fogo... o bolo não deu certo.”

Corrremos as três para casa de Seu Agripino que felizmente já havia dado jeito. Restou só parede negra e estilhaço de vidro do fogão por todo canto.
Susto grande, ah, foi!
E sendo ontem (dia do ocorrido) domingo e hoje dia de loja aberta, lá foram Laura, Alice e Nonha (filha de seu Agripino) agora a pouco ver se encontram lacre e vidro na cidade.

Agora ouço gente a vir comprar geladinho de Seu Agripino, que faz com a filha e vende para toda a povoação. Já consertaram o fio da geladeira, no mesmo dia veio vizinho e ajeitou. Salvaram-se os geladinhos de maçã verde, uva, acerola, melancia, melão.
  
E segue o ranger das portas e o cantar dos pássaros.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Chegança no povoado Alegre (vídeo)


Povoado Alegre, Itaguaçu da Bahia, 14 de julho de 2012


Tem a Dona Maria, o Seu Agripino, a outra Dona Maria, a Cirlene, Felipão, Vitor, Juninho. Chegamos nas casas aqui de forma diferente: era dia, quase meio dele; estávamos sem nariz, com nossos vestidos e brincos floridos e instrumentos, frente às casas a tocar cantigas. Fez toda a diferença chegar assim! Era chegada mansa, nos convidavam a entrar ou já iam brotando cadeiras nas ruas para sentarmos a “prosear”. Após as músicas explicações de quem, por que, de onde viemos. Seu Pedro reconheceu meu nariz: com nariz grande assim já sei que é gaúcha. É, Seu Pedro, sou sim.
Na primeira casa brilhou olho, na segunda ganhamos almoço e nos acompanhou Dona Maria por toda a rua do povoado, porta em porta.
E assim nos brindaram aqui com histórias, abraços, sorrisos. E assim reconhecemos um chegar a meu ver muito mais doce, sereno e leve que no povoado anterior.  Olhávamos nos olhos com tempo e brisa mansa. Bailavam em nossa frente mães, crianças, avôs. 

"Óh Senhora do Rosário, a sua casa cheira
 Óh Senhora do Rosário, a sua casa cheira
Cheira a cravo, cheira a  rosa, cheira a flor de laranjeira
Cheira a cravo, cheira a  rosa, cheira a flor de laranjeira..."


“Eu gosti !”



Sophia foi uma das crianças que conhecemos em Olhos d’Água. Uma daquelas Sophias com espírito de gente vivida. Desde o primeiro momento conversava comigo como se estivéssemos nos reencontrando, e não nos conhecendo. Ela deve ter seus três ou quatro anos de idade, mas com independência de passarinho criado. 


Sophia andava no colo, mas falava da vida o que ela pensava. Ao encontrar comigo decidiu e nos convidou para ir para casa de “mãe” – que na verdade era sua vó – e ao saber da despedida veio logo me contar, com olhinhos de saudade: “eu gosti!”

Pouco antes de chegarmos à Olhos d'Água


Ao pararmos em Ibipeba pedimos informações a um casal muitíssimo simpático que passava um pouco de tempo sentado à porta da lanchonete. De lá, com votos de sorte para nossa caminhada, tomamos estrada. Rumamos à nossa primeira estrada de terra nesta viagem. Seguimos à procura dos povoados, os mais pequeninos.
Passamos pelo primeiro: lugar bonito de gente calma e sorridente. Era grande, mas de ar acolhedor. Ao passarmos por ele pairava a sensação de que podia ser ali nossa paragem. Mas, com ela, seguimos à procura de lugar ainda menor.
Pouco tempo depois, Genifer sugeriu que parássemos o carro à beira da estrada e nos preparássemos para o cortejo. Trocamos de roupa no carro mesmo ou ao lado dele, como que escondidas de outros carros que viessem a passar pela mesma estrada. Meio arrumadas religamos o motor e seguimos em procura.
Depois de longo tempo sem avistarmos outro povoado nos aproximamos de um senhor moreno a pedalar devagar sua bicicleta. “Moço, daqui pra frente tem algum povoado perto?” O moço, já senhor, era seu Reniltom. Nenhuma de nós sabia que era, mas era sim. E nos disse que estávamos bem perto de certo lugarejo de nome Serra Grande. Agradecemos, mas seguimos esquecidas de perguntar se Serra Grande era mesmo lugar pequeno.
Chegamos a Serra Grande. Meu impulso, ao avistar poucas casas, foi o de parar. Estacionei o carro à sombra de uma árvore e saí dele para respirar um pouco. Não me lembro bem em que repousava meu olhar quando uma voz doce me disse: “O carro quebrou?” Que susto: à minha frente estava seu Reniltom. Como não o vi chegar? Como já estava ali? Feito aparição chegou e conversamos um pouco.

Fez bem aos ouvidos ouvir seu sotaque. Abrandou a alma sua doçura.

Seguimos ainda para outro povoado. Lá a dúvida entre ficar em Olhos d’Água e voltar à Serra Grande, povoado em que morava o doce senhor. O sol começava a sair. Era preciso escolher. Entre nós um ar de tanto pode ser aqui como lá.
A noite que se aproximava trouxe à Genifer uma ideia: tirarmos a decisão na moeda. Esta por seguidas vezes foi jogada para cima. Insistia em não se deixar cair na mão da moça. Parecia me dizer: “Não sirvo pra isto, Laura.” Ainda assim escolheu. Na quarta tentativa nos disse: “É aqui”. Ficamos.

Seu Reniltom, então, se fez lembrança delicada.